sábado, 8 de março de 2008

Crônica de Mário Prata

Quando propus-me a montar o Rápido e Rasteiro * , apostila do curso, anexei a seguinte crônica publicada numa determinada revista (guia das profissões) da UNESP. Assim que encontrar o número colocarei aqui juntamente com a ilustração feita especialmente para a mesma crônica.

Crônica I

- É escritor? E isso é profissão que se apresente? 

Eu achava que era. Tinha 16 anos, morava numa pequena cidade do interior (Lins) e já escrevia no jornal da cidade (coluna social, pode?) e na Última Hora do grande mestre Samuel Wainer.


- Você escolhe: medicina, engenharia, advocacia, odontologia. Ou Banco do Brasil.


O que eu queria era sair de Lins, ir para São Paulo, escrever. Ler. Conhecer pessoas. Ser comunista. Entrei para o Banco do Brasil onde trabalhei durante 8 anos.



Fiz faculdade de Economia na USP, fui aluno do Delfim Neto. Quando estava com 24 anos (1970), larguei o Banco e a faculdade. Ia ser escritor.


Meus pais quase morreram. Mas o velho, filho de um poeta amador, como quem não quer nada, me deu, de aniversário, uma Lettera 22, da Olivetti, que iria me acompanhar até o advento do computador.

Escrevo para cinema, teatro, televisão, literatura infantil e adulta. Só não escrevo bulas e poemas, que eu acho um pouco difícil.

Desde os 14 anos, na Gazeta de Lins, vivo deste ofício esquisito de escrever. Não fiquei rico. Mas pobre não sou. Dá para ter um carrinho do ano e viajar de vez em quando. Acho que se eu estivesse no Banco do Brasil ou me formado em Economia, estaria na mesma base. A diferença é que eu adoro o que eu faço.


Imagine você ficar alguns dias sem fazer absolutamente nada, tomando uma cervejinha, dando uns tapinhas e tendo umas idéias. Pois é disso que vive o escritor. De ter idéias. Quanto mais maluca a idéia, mais eles pagam. Isso é que é incrível: a gente fica pensando besteira e sempre tem alguém que paga para você fazer isso. Claro que tem também o trabalho braçal da datilografia. Mas hoje em dia, com o computador, até essa parte (a mais chata do ofício) ficou bem mais lúdica. Escrever no computador, como eu estou fazendo agora, é mais uma brincadeira. 


E por falar em datilografia, me lembrei de uma história que se passou com um dos nossos maiores cronistas e tradutores: Paulo Mendes Campos. Estava ele a fazer uma tradução dificílima de Shakespeare e um pintor de paredes a retocar a sua sala. Depois de três dias de trabalho o pintor disse para o escritor:


- Se eu soubesse escrever à máquina também não fazia nada o dia inteiro. Ficava só escrevendo.


O que eu quero dizer é que Escritor é uma profissão como outra qualquer. Interrogado por uma jornalista principiante, William Faulkner respondeu se era fácil ou difícil escrever:


- Minha filha, ou é facílimo ou é impossível!


Para mim, difícil é extrair um dente, operar uma vesícula, construir um prédio, defender um assassino ou fazer a contabilidade de uma empresa: escrever é facílimo.


para nós escritores, as pessoas, às vexes, se surpreendem com o nosso preço:


- Mas você escreveu isso em meia hora!


No que eu costumo responder:


- Não cara, eu escrevi isso em 34 anos de profissão...


Ou então:


- Mas tudo isso por apenas vinte linhas?


E eu retruco:


- A teoria da relatividade tem apenas três letras...


O que importa, em qualquer profissão, é que a gente goste do que está fazendo. É que agente se divirta com o nosso próprio trabalho. Às vezes fico anos sem tirar férias e nem percebo. É como se eu estivesse sempre de férias. Remuneradas, é claro.


Alguns dos melhores escritores do mundo são brasileiros. O problema é que todos eles escrevem em português, esta língua natimorta. Se escrevessem em inglês...





Crônica II


HOJE vou falar sério. Vou escrever sobre o ato de escrever.
O ato de escrever é uma profissão como outra qualquer. Exige um certo dom de observação, talento e muita técnica. Além do suor, é claro. Será mesmo que é uma profissão como outra qualquer? Meu filho Antonio, de 16 anos, quer ser escritor como o pai e a mãe. E me perguntou: "que faculdade eu devo fazer?". Penso. Não sei, meu filho.
Além de mandar ler os clássicos brasileiros, portugueses, franceses e russos, sei lá. O que eu quero dizer é que o Brasil é um dos únicos países do mundo onde não se ensina a escrever em nenhuma faculdade. Não temos uma Faculdade de Escritores. Cuba, por exemplo, tem uma escola de roteiros e dramaturgia que forma alunos de todo o mundo. Seu diretor, ninguém menos que Gabriel Garcia Márques. Jean Claude Carriere, roteirista dos últimos filmes do Buñuel, faz o mesmo nos arredores de Paris. Aqui o jovem tem que aprender na marra, na datilografia apressada. Mas não é com os dedos que se escreve. Tem que aprender apenas lendo os outros. Será que isto basta?
Sou júri de um interessante projeto do Ministério da Cultura para premiar (com financiamento) projetos de filmes de longa, média e curta metragem. Já li uns 70 roteiros. A quantidade de pessoas (inteligentes) que acha que sabe escrever um roteiro de cinema me impressionou. Filmes onde todos os personagens falam exatamente igual, roteiros sem pé nem cabeça, nenhuma estrutura dramática, sem ação nem reação, é o que se encontra ao folhear os calhamaços que o MinC me mandou. Por que não uma escola para roteirista de cinema? Glauber Rocha fez um grande mal para os novos cineastas brasileiros quando afirmou que, para filmar, basta ''uma câmera na mão e uma idéia na cabeça". O problema é que os pretensos cineastas não têm nem a mão nem a cabeça do baiano.
Vejam o caso das telenovelas brasileiras. Há alguns anos que elas são todas iguais. Se pegar a primeira parte da novela das seis, a segunda da novela das sete e a terceira da das oito e misturar, ninguém vai perceber a diferença. Tudo igual. Claro, são escritas pelos mesmos profissionais há mais de vinte anos. Não houve e nem haverá nunca uma renovação nas telinhas. O gênero telenovela tende a morrer por falta de autores.
A literatura brasileira, tão rica (apesar de escrevermos em português) não nos dá um Machado, um Nelson Rodrigues, há quanto tempo? O teatro brasileiro, que teve um grande boom de dramaturgos nos anos 60 e 70, carece de textos. Quem é o novo dramaturgo brasileiro?
Eu não tenho nenhuma dúvida ao afirmar que a profissão de escritor ainda é olhada meio de soslaio pela sociedade brasileira. Quando preencho alguma ficha (em hotel, por exemplo) e no item profissão tasco ESCRITOR, todo mundo me olha meio de lado, provavelmente pensando: mas isso lá é profissão? Pior ainda é quando digo numa rodinha que escrevo, logo alguém pergunta: "mas, para viver, faz o quê?". Ora, minha senhora...
Meu filho já sentiu isso. Com 16 anos todo mundo pergunta para ele o que ele vai ser. Ele tem vergonha de dizer que quer ser escritor. As pessoas, segundo ele, acham que é esnobismo querer ser escritor no Brasil. Não consigo, por mais que eu tente, descobrir de onde vem este absurdo preconceito.
Será que não caberia à nossa arcaica e acadêmica Academia Brasileira de Letras pensar um pouco neste assunto enquanto tomam chá de cadeira? Será que a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (a nossa velha SBAT) não poderia fazer algo nesse sentido? Será que as USPs e Unicamps da vida não poderiam dar bolsas para brasileiros irem estudar lá fora? Será que apenas a Fundação Vitae (que é do Mindlin, um empresário que gosta de ler) subsidiará escritores no Brasil?
Espero que o filho do meu filho, se um dia quiser ser escritor, tenha a possibilidade de estudar numa faculdade específica para isto e aprenda as técnicas necessárias. Como toda profissão, a nossa também requer técnicas. E, portanto, cursos técnicos para tais fins.
Não tenha vergonha, Antonio, de querer ser escritor. Afinal, você foi criado pelos seus pais, que só sabem fazer isso na vida: escrever. Com muito orgulho, diga-se de passagem.
Quando eu disse para o meu pai, aos 16 anos, que queria ser escritor, ele torceu o bigode e me perguntou:
- E isso lá é profissão que se apresente?
Hoje, 32 anos depois, eu respondo para o meu filho:
- É!
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Mario Prata é escritor e jornalista.
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(*) Batizei com este nome em homenagem  a artista gráfica e poetisa Angélica Torres Lima. Emana de um pequeno projeto de jornalzinho interno quando trabalhava na Capes criado por esta singular e exímia escritora no trato com as palavras.


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